Paulo: O Principal Intérprete da Cocrucificação



Embora o apóstolo Paulo nunca tenha conhecido a Cristo "na carne", ele parece ter tido um discernimento mais profundo dos mistérios da fé do que outros apóstolos. Ele foi a força dominante na formação do caráter e vida da Igreja nascente. Depois do Mestre, ele é a personalidade notável do Novo Testamento, dando a maior contribuição para a literatura e o crescimento da Igreja. Contudo, ele não conheceu a Cristo "segundo a carne" como os outros apóstolos; ele nunca esteve sob a influência dos ensinamentos e ministério do Salvador.


Treinamento de Paulo


Depois da revelação no caminho de Damasco, Paulo não foi a Jerusalém nem "consultou carne e sangue". Ele foi à Arábia.

Ele quis ficar sozinho. Tal experiência como a que tinha tido - a visão daquela ofuscante luz, a apreensão súbita daquela glória inefável, a descoberta de que o Jesus do amaldiçoado madeiro não era outro senão o Cristo de Deus -, uma revelação tão esmagadora do poder e da beleza d'Ele, que não é outro senão o Rei dos reis, fez com que um período de silêncio e meditação fosse absolutamente imperativo. Paulo passou três anos em profunda meditação (Gl 1.16-18).

Poderia parecer que ele tivesse cometido um grande erro. O quê?! Não ir a Jerusalém consultar Pedro, Tiago e João? Pense nisto: ele, que não tinha conhecido Jesus, teria de se assentar aos pés dos apóstolos. Ele poderia ter falado tudo a Pedro. Ele poderia ter obtido informação de primeira mão com João. Alguns de nós teríamos viajado por todo o mundo por causa de tal privilégio. Paulo cometeu um erro? Vamos deixar que ele fale por si mesmo: "Quando... [Deus] aprouve revelar seu Filho em mim... não consultei carne e sangue, nem subi a Jerusalém para os que já eram apóstolos antes de mim, mas parti para as regiões da Arábia..." (Gl 1.15-17).

Para Paulo, naquela sublime hora, a suprema necessidade era a solidão, para que, sem ser molestado e perturbado, pudesse se entregar a uma completa contemplação da visão. Cristo ocupando e inundando o horizonte. A glória de Cristo o absorveu tanto que durante três anos ele não pôde se separar do imã celestial. O quê? Ir aos apóstolos para obter iluminação espiritual quando o próprio Senhor Jesus Cristo tinha vindo com a ofuscante glória ao seu espírito? Ir aos homens em busca da verdade quando Aquele que é a verdade Se constituiu o seu professor?

Catorze anos depois, ele foi a Jerusalém (Gl 2.1), mas ele faz uma confissão significativa de que aqueles "que pareciam ser alguma coisa nada me acrescentaram" (Gl 2.6). Os apóstolos não puderam lhe dar nenhum esclarecimento. No caso, foi o contrário. Ele, Paulo, entendeu melhor. Ele teve uma compreensão superior. Ele conheceu a Cristo (o Cristo de Deus) melhor.

Seu discernimento em tais questões como a relação dos gentios com a Igreja, a relação do cristianismo com o judaísmo, a doutrina da habitação interior de Cristo, a doutrina do corpo místico, a universalidade do cristianismo - seu discernimento dos mistérios da fé era mais profundo. Seu julgamento era mais profundo.

Os três anos no deserto arábico aos pés de Cristo glorificado tinham feito infinitamente mais por este antigo fariseu orgulhoso do que os três anos com o Homem - Jesus tinha feito

aos apóstolos pescadores. Paulo estava sempre à frente deles - como um missionário, como um teólogo, como um pregador, como um organizador, como um santo. Depois do nosso Senhor, é para com Paulo que a Igreja tem a maior dívida.

Sendo assim, como respondemos a isso? Paulo, que nunca conheceu Jesus segundo a carne, O conhecia melhor segundo o Espirito. Ele, como nenhum outro, estava escondido com Cristo em Deus. Ele tinha sido arrebatado até o terceiro Céu, onde ouviu coisas inefáveis, completamente proibidas. Foi ele que orou pelos seus irmãos efésios para que o Senhor os fortalecesse com poder mediante o Seu Espírito no homem interior; para que Cristo pudesse habitar em seus corações pela fé; para que eles, arraigados e fundados em amor, pudessem ser capazes de compreender com todos os santos qual o comprimento e a largura, a profundidade e a altura e conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento, e para que pudessem ser cheios com toda a plenitude de Deus (Ef 3.16-19).

O Ensinamento de Paulo

Ora, qual era a doutrina central sobre a qual Paulo focou a sua vocação? Foi a da justificação pela fé? Muitos diriam que foi. Contudo, um estudo das suas epístolas leva a pessoa à convicção de que a glória do grande apóstolo não estava simplesmente no fato de que Cristo tinha morrido por ele. Com este estava sempre associado outro aspecto da cruz, a saber: o fato de que ele tinha morrido em Cristo.

“Mas longe esteja de mim gloriar-me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim, e eu, para o mundo" (Gl 6.14).

"Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim" (Gl 2.19-20).

"... sabendo isto: que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos..." (Rm 6.6).

"Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante? De modo nenhum! Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos?" (Rm 6.1-2).

“... porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus" (Cl 3.3).

Essa parece ter sido a sublime lição que o Salvador, lá no deserto arábico onde Paulo escutou em arrebatado assombro, gravou com fogo na essência do seu ser. Foi o significado profundo do Calvário que o Mestre revelou àquele agora quebrado fariseu - a ele, que estava para se tornar o maior dos apóstolos.

O véu foi removido, e Paulo viu o mistério escondido da cruz. Ele viu a si mesmo ali com Jesus - no propósito de Deus potencialmente crucificado. Para Paulo, a vida cristã nunca devia ser uma mera imitação, mas uma gloriosa participação na morte e ressurreição do Salvador. Para ele, o crente era um membro do corpo de Cristo - o do Seu osso e carne da Sua carne. Para ele, o viver era Cristo. Ele não tinha um pouco do ego e um pouco de Cristo, ou até mesmo um pouco do ego e muito de Cristo.

Ele simplesmente não tinha nada do ego e tudo de Cristo. Ele viu que Deus não tinha colocado somente os pecados sobre o Filho, mas também o pecador, e que em Cristo ele tinha de fato, ainda que potencialmente, morrido. Ele nunca hesitou. Ele entregou a "vida do ego" à morte e se apresentou diante do mundo livre em Cristo.

Tão completamente o grande apóstolo se identifica com Cristo, percebendo que essa identificação de todos os crentes com a Cabeça Federativa da Nova Raça, Cristo, o Senhor, era algo que na mente de Deus tinha sido concebido como a forma de tirar o homem do pecado e da escravidão da corrupta "vida da carne", e a qual jorra, por assim dizer, da própria natureza da redenção (Cristo identificando-Se com o homem, tomando a forma de um homem na encarnação e sofrendo pelo homem na cruz para que o homem pudesse se identificar com Aquele que tinha morrido por ele e n'Ele morrer para o pecado) - tão completamente, repito, o apóstolo se identifica com o seu Senhor e Salvador Jesus Cristo, que vê em seus próprios sofrimentos como um seguidor de Cristo o que podemos chamar de um prolongamento do Calvário. Paulo fala disso como um completar aquilo

que faltava das aflições de Cristo. Numa palavra, o apóstolo interpreta o seu próprio sofrimento à luz da cruz.

Vemos isso na Segunda Carta aos Coríntios, onde ele trata das perseguições e provações que sofria. "Em tudo somos atribulados", diz ele, "perplexos... perseguidos... abatidos". Então segue a espantosa declaração que nos dá a chave da interpretação do segredo mais profundo da alma interior de Paulo: "... levando sempre no corpo o morrer de Jesus..." (2 Co 4.8-10). É o sofrimento de Cristo, é Cristo recebendo novos ferimentos, é Cristo sendo crucificado de novo em e por meio do seu servo. É o Calvário que é restabelecido. Não que Paulo considerasse os seus sofrimentos, em algum sentido, como uma repartição dos sofrimentos de Cristo como Redentor, quando tomou o pecado do mundo, ou como uma complementação da grande obra de expiação. Esta foi consumada definitivamente no Calvário. Nesta sublime entrega de Si mesmo como um resgate por todos, o pecador não teve nenhuma participação.

O que desejo é enfatizar o fato de que, para Paulo, a identificação com Cristo é algo tão verdadeiro que ele vê na cruz não apenas a morte do Salvador, mas também a morte potencial de todos aqueles que constituem o Seu corpo; algo tão completo que ele vê nos seus próprios sofrimentos como um cristão, e nas aflições de todos os cristãos, uma morte constante do próprio Senhor Jesus Cristo.

Mas não devemos pensar nessa morte à qual Paulo diz que somos sempre entregues por causa de Jesus (2 Co 4.11) como algo puramente negativo. Da morte, afirma Paulo, jorra a vida - a vida eterna! “"... levando sempre no corpo o morrer de Jesus, para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo... De modo que, em nós, opera a morte, mas, em vós, a vida" (2 Co 4.10-12). É quando morremos em Cristo para a "velha vida" que as barreiras são todas removidas e o rio de água viva jorra do nosso ser interior, trazendo a vida - a vida de Deus - para outros.

Quatro Mortes (ou 4 aspectos da morte)¹


Antes de deixarmos esse aspecto da nossa participação vamos brevemente resumir as suas implicações, como Paulo as viu.

Em primeiro lugar, em Cristo estamos mortos para o pecado (Rm 6.11). O pecado não pode ser vencido por simplesmente lutarmos contra ele. Se fosse algo que sempre estivesse fora de nós, isso não seria tão difícil. Mas o próprio ser está embebido nele. Uma gota de tinta em um copo d'água manchará toda a água. O ego é uma coisa muito traiçoeira. O nosso próprio pensamento está envenenado com a lepra do amor-próprio. O nosso espírito está tão distorcido, dilacerado, por causa do ego, fora do seu centro correto, Deus, e arraigado na carne - a velha vida é muito suja na visão de Deus -, que nenhum remendo, nenhum mero polimento, nenhuma demão de verniz adiantará. Jesus diz

que precisamos nascer de novo. Em Cristo somos levados ao sepulcro para sermos liquidados.


Cristo não pode ser para nós a vida de Deus sem ser para nós a morte do ego. "Não penseis que vim para trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas a espada" (Mt 10.34). Agora a faca deve cortar se quisermos ser livres. Não há outro caminho para

sairmos do egoísmo.

Em segundo lugar, em Cristo estamos mortos para o mundo. Isso não significa, naturalmente, que algum convento medieval, ou um retiro no deserto, ou a cela de um mosteiro, ou alguma coluna de Santo Estilita (Simeão Estilita) seja mais útil à vida cristã. Nenhum homem jamais esteve mais perto do centro das questões do mundo do que Cristo: seja no mercado, no templo, no lar, com o pobre, o mutilado, o coxo ou com aqueles que se alegravam numa festa de casamento, Ele estava sempre no rio da vida onde a corrente era mais rápida e mais profunda. Não, de fato, Ele não era um asceta. Contudo, podia dizer: "Não sou do mundo". "Eles não são do mundo como Eu não sou do mundo."

O mundo tem experimentado um abundante brilho exterior desde o dia de Cristo, mas a amizade do mundo ainda é inimizade contra Deus - pela simples razão de que o espírito do

mundo, com seus enganos e mentiras, sua ganância e sua concupiscência, provém do monstro chamado "ego". Satanás, operando por meio do orgulho do homem, é ainda o deus deste mundo. Estar em relacionamento íntimo com este mundo que crucificou Cristo? É inimaginável. O espírito que crucificou Cristo ainda está desenfreado no mundo. Nada mais lógico, nada mais inevitável, nada mais praticável do que o cristão ter de ser cortado do mundo. Até que este mundo mude a sua atitude em relação a Cristo, entronizando-O em suas próprias instituições e vida, nós, como discípulos de Cristo, nos encontramos compeli-

dos a nos posicionar contra o egoísmo e a ganância. Estamos mortos para o mundo em Cristo (Gl 6.14).

Em terceiro lugar, em Cristo morremos para o espírito partidário. Paulo, falando aos efésios sobre a parede que separava os judeus dos gentios, diz que Cristo derrubou essa parede pela Sua cruz, criando dos "dois um novo homem". Que a Igreja possa captar esta visão! Que ela possa se ver crucificada com Cristo! Como as paredes cairiam! A parede, por exemplo, do sectarismo. "Em Cristo não há nem grego nem judeu." Qualquer intensa manutenção de atitudes sectárias é positivamente não cristã. Toda divisão é da "carne". Satanás levanta paredes entre espírito e espírito, grupo e grupo, facção e facção, nação e nação - Cristo as derruba. Por ser cristã, a pessoa não ousa adotar qualquer visão exagerada do nacionalismo. A pessoa deve morrer para o jingoísmo. Somos em Cristo cidadãos do mundo com vastas responsabilidades para com toda a raça humana.

Somente a cruz de Cristo pode matar este monstro do jingoísmo, do sectarismo e do nacionalismo. Não que um bom cristão não reconheça os seus deveres para com o seu país. Ele reconhece. Na verdade, somente um cristão pode ser tudo o que um patriota verdadeiro deve ser, e quanto mais verdadeiro cristão, mais verdadeiro patriota. Mas acima do nacionalismo e do sectarismo está Cristo, e como membros do Seu corpo estamos

irrevogavelmente comprometidos com o glorioso programa de redenção do mundo.

Morremos em Cristo para todo espírito de divisão. Não podemos receber Cristo em nosso coração sem abraçar a humanidade, pois Cristo Se identifica com os interesses de toda alma vivente (Mt 25.31-46). Não podemos ter a Cristo se não tivermos a Sua cruz - e naquela cruz termos sido mortos para toda inimizade racial para dizer a verdade, tudo isso interfere com a perfeita harmonização da vida do mundo para a realização dos mais elevados interesses da humanidade.

"Cristo Jesus... é a nossa paz, o qual de ambos [os povos] fez um; e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio... para que dos dois [judeu e gentio] criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade" (Ef 2.13-16).

Finalmente, em Cristo morremos para lei: “Assim, meus irmãos, também vós morrestes relativamente à lei, por meio de corpo de Cristo..." (Rm 7.4). Cristo não nos retirou somente da "vida da carne" e nos separou do mundo pela Sua morte, de qual somos participantes, mas nos livrou do domínio da lei. Não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça - é a lei do Espirito da vida em Cristo Jesus que nos governa. De certa forma, ainda é a lei, "a lei perfeita da liberdade", da qual Tiago fala em sua epístola. Mas não devemos confundir essa lei com a mosaica. Uma liberta, a outra prende. Uma dá o poder para ser semelhante a Cristo, a outra é legalismo morto. Uma é expressão da nova natureza, a outra é uma tentativa de reprimir e controlar velha.

Quão bom é ser livre - livre do domínio da "vida da carne", livre da tirania do mundo, livre do hediondo monstro que chamamos de "ego". Livre do legalismo de uma lei morta que, como

Paulo diz, opera a ira. Livre da escravidão do medo, ansiedade e preocupação. Quão bom é ter um espírito liberto com a vida de Deus. É a cruz de Cristo que opera essa libertação. Somente quando estamos com Cristo em Sua morte e nos apropriamos pela fé da força libertadora do Calvário (isto é, cremos que com Cristo morremos) é que podemos experimentar a verdadeira liberdade pela qual o nosso espírito anela.


(F. J. Huegel - Porção do livro: Osso do Seu osso - Cap.04)


¹Notas do Editor da postagem


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