Participantes da Ressurreição de Cristo

 


Quando avançamos passo a passo na consideração daquilo que a nossa participação em Cristo implica, descobriremos que essa é a chave para as insondáveis riquezas, a lâmpada de Aladim do inefável poder, a porta de entrada para uma alegria que nunca tínhamos sonhado ser possível deste lado das portas do Céu.

Não podemos prosseguir nesses passos sem experimentar uma revolução muito radical em nossas atitudes, nossos relacionamentos e nosso pensamento, para que todas as coisas de

fato se tornem novas. Nós olhamos para trás, para o antigo caminho da imitação, de luta, fracasso, confusão - o antigo caminho do "ego", o caminho da "carne" -, com indizível alívio, com inexprimível gratidão porque um novo dia raiou. Nenhum príncipe deserdado, que depois de anos de luta finalmente volta ao que lhe pertence - o nome, a riqueza, o poder no palácio do seu pai -, poderia olhar para trás, para os anos de perda e de vergonha, sem os mais profundos sentimentos.

Descobrimos que depois de rendermos tudo ao Mestre, Ele vem para habitar em nós por meio do Seu Espírito para que a nossa própria maneira de pensar seja governada por Ele. Somos conduzidos a orar? Ele nos dá esse espírito de oração, o acesso à presença do Deus vivo. E as nossas orações têm uma força e uma vitalidade que nos leva a rir do impossível. Somos provados? Ele nos sustenta em Seu seio e os beijos da Sua boca fazem o nosso coração cantar. Somos tentados? Ele nos cinge com a força - somos mais que vencedores n'Ele.

O passo seguinte que consideraremos é a nossa participação na ressurreição de Cristo. Não apenas morremos em Cristo - n'Ele ressuscitamos. A nossa morte para o ego é apenas a porta de entrada para uma vida mais ampla, mais plena - a vida mais abundante. Quando assinamos a nossa própria sentença de morte e destinamos a "velha vida" à sepultura, é apenas para descobrir que somos os recipientes de uma vida infinitamente mais maravilhosa - a vida dos Séculos. Tornamo-nos mais uma vez templos do Deus vivo. Aquele elemento de discórdia - o ego, a "vida da carne", a qual, embora religiosa, ainda está em inimizade com Deus, pois "os que estão na carne não podem agradar a Deus", "a mente carnal é inimizade com Deus" -, uma vez removido, Deus vem novamente para Si mesmo em nós e nós realmente vivemos.

"Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou... nos deu vida juntamente com Cristo... e, juntamente com ele, nos ressuscitou..." (Ef 2.4-6).

Verdade maravilhosa! Fato glorioso! Como isso enriquece!

Que tesouros de graça, que poder, que glória - quanta riqueza de significado! A ressurreição de Cristo é a minha ressurreição.

Deus me ressuscitou com Ele. Ele é algo adaptado à minha necessidade mais profunda. Eu quero vida, vida abundante, vida eterna. O meu espírito almeja por vida. "Como suspira a corça pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma” (S1 42.1)

Jesus tinha dito que tal vida estaria à disposição do crente.

"Quem beber desta água tornará a ter sede; aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna" (Jo 4.13-14). "Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva" (Jo 7.38). "... eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância" (Jo 10.10). "Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome; e o que crê em mim jamais terá sede" (Jo 6.35).

Não fosse por essa vida divina, que em parte todos os crentes, até aqueles que ainda são dominados pela "vida da carne", desfrutam (para alguns ela é um ribeirão muito pequeno, quase imperceptível; para outros, é como uma corrente poderosa, "rios de água viva", o grau é determinado pela união da pessoa com Cristo e da dependência d'Ele - veja Ezequiel 47, a visão das águas crescentes), eles não poderiam participar da cruz de Cristo. Somente uma criatura viva pode morrer. Somente as almas que receberam em parte a vida de Cristo podem morrer para o “ego".

O "ego" não pode vencer o "ego". Precisamos ser dominados por Cristo para morrer para a "vida da carne". E à medida que recebemos a Cristo, morremos para o "ego". Ou, de modo inverso, para nos achegarmos mais plenamente a Cristo devemos morrer mais plenamente para o "ego".

No primeiro capítulo da Carta aos Efésios, Paulo faz uma maravilhosa oração. Ele diz: "... não cesso de dar graças por vós, fazendo menção de vós nas minhas orações, para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele, iluminados os olhos do vosso coração, para saberdes... qual a suprema grandeza do seu poder para com os que cremos...". E esse poder que é para nós, por nós e está em nós, os que cremos, de onde emana - o que é? "... o qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos..." (Ef 1.16-20).

Esse é o poder incomparável que opera no crente - o poder da ressurreição de Cristo. Paulo queria fazer com que os efésios percebessem esse fato.

Quando consideramos as exigências do Novo Testamento que são atribuídas à vida cristã, percebemos que todas elas pressupõem essa verdadeira unidade do crente com Cristo no

poder da Sua ressurreição. Ninguém menos do que uma alma centrada em Cristo, alguém com Ele na morte e ressurreição, pode estar à altura do ideal de Cristo na vida e serviço cristãos.

Amar os inimigos sem uma profunda participação no poder da vida infinita de Cristo, com o amor divino (no grego, ágape) que a Palavra ordena, seria tão impossível para o homem puramente natural, até mesmo para o cristão em quem a "vida da carne" ainda está no domínio, quanto para um verme fazer o papel de um pássaro.

Não há nenhuma exigência do Novo Testamento que não leve imediatamente o crente face a face com um dilema esmagador. Ou ele deixa de se mover na esfera do puramente natural - morre para a "vida da carne" e encontra em Cristo ressuscitado uma nova vida ou irá falhar como um cristão. Para a Nova Vida, a vida que flui de Cristo, o Sermão do Monte não apresenta nenhum problema. Tudo é natural, fácil, uma expressão espontânea de princípios já inerentes. Para a "velha vida", que move o homem naturalmente, que em virtude da sua unidade com uma raça caída surge dentro dele, o Sermão do Monte nunca pode ser algo além de uma espantosa contradição. Os jeitos, os costumes, a língua de um hotentote (ou cóis, um povo nativo do sudoeste da África) não seriam mais ininteligíveis

ou impraticáveis para a maioria dos europeus, ou americanos, ou latinos, do que o Sermão do Monte para uma pessoa que não nasceu de novo (isto é, morreu para a "vida do ego" para ressuscitar com Cristo no poder de uma "nova vida").

Enganamo-nos com a linguagem técnica do momento. Falamos fluentemente do Evangelho social, e o Céu sabe que precisamos de uma aplicação social dos ensinamentos de Jesus,

uma injeção em todas as ramificações da vida do amor de Cristo. Não falamos menos fluentemente do "seguir as pegadas do Mestre". Mas esquecemos de que um mero "fazer o que Jesus fez" naquilo que tem a ver com os nossos relacionamentos sociais nunca nos levaria à vida de Cristo. Pode-se fazer uma rā morta dar pontapés como se estivesse viva pelo toque de uma corrente elétrica. Uma imitação de um francês não me faria um francês. Sou alemão e eu teria de "renascer" para ser algo diferente do que sou.

E assim é na vida cristã. Devo nascer de novo. Por isso é que Cristo me levou com Ele para a sepultura e me trouxe de volta como uma "nova criatura". Ele acabou com a minha velha

vida quando, lá na cruz, como um Representante, morreu; e Ele me comunicou uma nova vida quando Se levantou da sepultura.

Cristo não espera nada da "carne". Por mais religiosas que sejam suas vestes, por mais santa que seja sua conduta, por mais santificadas que sejam suas promessas, tudo isso "para nada aproveita". Ainda é apenas "carne". Ainda é apenas a esfera natural. Ainda é "ego".

A fé cristã não é somente sobrenatural em seus aspectos em relação a Deus. Não é somente a encarnação de Cristo que entra na categoria dos milagres. O crente também se torna uma possessão de Deus. Ele também, como um participante da ressurreição de Cristo, fica sob o controle do sobrenatural. Não é somente Cristo que morre pelo pecador. É o pecador que morre em Cristo. Não é somente Cristo que é ressuscitado dos mortos.

É o crente que é ressuscitado com a Cabeça divina. Não é somente o homem que alcança a Deus - é Deus que toma a forma de homem e então, como o "Filho do Homem", muda todo o processo da vida, sujeitando-a à cruz para a extinção daquele grande monstro que tem sido a fonte de toda a corrupção, a raiz da miséria do homem, a saber, o princípio do ego; e a traz para fora do túmulo impregnada com a Vida das eras - a Vida de ressurreição. Isso é a fé cristã a fé dos apóstolos, a "fé do Filho de Deus". "Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim" (Gl 2.19-20).


(F. J. Huegel - “Osso do Seu Osso”, Cap.5)


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