A Vida Cristã: Uma Participação, Não uma Imitação
Ninguém pode fazer um estudo do Novo Testamento sem experimentar algo como um choque, em vista da notória diferença entre a vida cristã como estamos acostumados a viver e o ideal do Mestre.
A desanimadora incongruência e as dolorosas contradições são tão terrivelmente evidentes, que até aqueles que têm apenas o conhecimento superficial da Palavra do Salvador - sim, ousamos dizer, até aqueles que nunca investigaram as páginas do Novo Testamento - ficam chocados. Por menor que seja a fé que possam ter, ela é abalada.
Quando alguém se depara com o quadro da vida cristã conforme exposta pelos apóstolos, e que hoje caminha sob o nome dela, fica vacilante. O corpo emaciado de um amigo morto - para não dizer o seu cadáver - não poderia estar em um contraste mais violento com aquele que durante os dias de saúde e vigor andou ao nosso lado.
Não é o meu objeto esmiuçar o cristão moderno. Não tenho nenhuma rixa com a Igreja. Não estou pretendendo desempenhar o papel de um iconoclasta. Fui durante dez anos um missionário da cruz e não tenho intenção de desertar das fileiras. O meu único objetivo em chamar a atenção para o nosso fracasso como cristãos é apontar o caminho para a vida vitoriosa em Cristo para aqueles que estão conscientes da sua pobreza espiritual e têm "fome e sede de justiça".
A quem, então, dirijo esta mensagem?
É para o cristão que se encontra à beira do desespero, por causa do quadro repulsivo que ele mostra todas as vezes que anseia refletir fielmente a imagem do Mestre, que é dirigida esta mensagem. É para aquele cuja sede por água da vida, longe de ser extinta, o consome, e o deixa doente de desejos ardentes, que com prazer abrirei o segredo da vida abundante - a vida da qual Jesus falou quando disse que "rios de água viva" fluiriam do interior daqueles que cressem. É para aquele que está cansado das imitações vazias, enjoado das fraudes - que se tornou vítima de uma auto-repugnância secreta, aquele que sente que, como um cristão, deveria ser liberto do poder do pecado e, apesar de todas as suas lutas, é esmagado por um sentimento de fracasso - que eu desejo trazer a mensagem da cruz. É para aqueles que anelam por poder - aquele poder que é do Alto -, aqueles que desejam ter sua vida e serviço, ministério e pregação dirigidos pelo Espírito do Deus vivo, que sinto ter uma palavra que não falhará em conduzi-lo para um novo dia.
Mas devo resumir brevemente os requisitos da vida cristã antes de entrarmos na minha tese.
As Diretivas do Senhor
Devemos andar como Jesus andou (1 Jo 2.6).
Devemos amar os nossos inimigos (Mt 5.44).
Devemos perdoar como Jesus perdoou - assim como Ele, que, na vergonha e angústia da cruz, olhou para aqueles que O blasfemavam, enquanto O assassinavam, e os perdoou (Cl 3.13).
Devemos ser ativamente amáveis em relação àqueles que nos odeiam, sim, devemos realmente orar por aqueles que maliciosamente nos usam (Mt 5.44).
Devemos ser vencedores - mais do que vencedores (Rm 8.37).
Devemos dar graças em todas as coisas, crendo que todas elas, até aquelas que arruinam as nossas mais afetuosas esperanças, contribuem para o nosso bem (Rm 8.28; Ef 5.20).
Não devemos andar ansiosos de coisa alguma, mas em tudo, por meio da oração e súplica, com ação de graças, os nossos pedidos se tornem conhecido para Deus, para que a Sua paz, que excede todo o entendimento, possa guardar o nosso coração e a nossa mente (Fp 4.6).
Devemos sempre nos alegrar no Senhor (Fp 4.4).
Devemos pensar em tudo o que é verdadeiro, tudo o que honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo que é de boa fama; se há alguma virtude e se há algum louvor (Fp 4.8).
Devemos ser santos, pois Deus é santo (1 Pe 1.16). O Salvador disse que se crermos n'Ele, rios de água viva fluirão do nosso interior (Jo 7.38).
Devemos permanecer firmes, em inconfundível contraste com o mundo corrompido, perverso, sem culpa e irrepreensíveis, filhos de Deus, sem censura, brilhando como astros (Fp 2.15).
Devemos positivamente nos odiar - não mimar, nem acariciar, nem buscar, nem amar a nós mesmos, mas literalmente odiar e renunciar a nós mesmos, e isso diariamente (Mt 16.24).
É-nos dito que não podemos ser discípulos de Cristo se não renunciarmos a nós mesmos completa e absolutamente em todas as coisas, e em todo tempo (Lc 14.26). Paulo nos diz que as nossas afeições devem ser colocadas nas coisas do alto (Cl 3.1).
Basta! Não ousamos ir além. Isso somente aumentaria a nossa vergonha e a nossa dor. Somos culpados. Não somos o que Cristo queria que fôssemos. Se essa é a medida da vida cristã, se essa é a base sobre a qual devemos ser julgados, se isso é o que Deus requer de nós como cristãos, como Isaías clamaremos: "Ai de mim! Pois estou perdido" (Is 6.5).
Por que o Salvador - tão gentil, compreensivo, amável e sábio - não faz exigências mais de acordo com a natureza humana? Por que Ele parece ser tão desarrazoado? Por que Ele
não exige de nós o que poderíamos razoavelmente alcançar? Ele nos oferece as alturas, contudo não temos asas. Fala sobre o super-homem; não é tanto uma mera superabundância de homem que se é requerida. Parece mais ser um homem deificado, por assim dizer, que o Novo Testamento proclama como o tipo do verdadeiro cristão. Por que o Salvador vai assim tão além do simplesmente natural e coloca o cristão vivendo numa base sobrenatural? Afirmo que não é natural amar os nossos inimigos; não é natural alegrar-se sempre; não é natural ser agradecido pelas coisas que machucam; não é natural nos odiar; não é natural andar como Jesus andou.
Nosso Doloroso Dilema
Honestamente enfrentamos este dilema? Temos tido coragem para enfrentar as implicações da Palavra de Cristo? Algumas coisas são ganhas por meio de subterfúgios, fingindo que o abismo entre o humanamente possível e a lei de Cristo (isto é, o que podemos alcançar pelo natural e o que Deus requer em Sua Palavra) não é afinal tão grande?
Se nenhuma resposta satisfatória pode ser dada (minha argumentação, conforme declarada nos próximos capítulos, é que pode), o sistema cristão merece as difamações dos seus inimigos. Ele deve enfrentar a grave acusação de enfático, exagerado, fanático, ou o que quer que possamos chamar isso carece de ajustamento entre a lei de Cristo e natureza humana.
Esse não é nenhum novo dilema. Paulo, o grande apóstolo dos gentios, não tem nenhuma dúvida sobre a sua convicção de que a natureza humana, como tal, nunca pode alcançar o ideal de Cristo. Ele não minimiza a esmagadora incongruência. Ele deixa notório o fato de que a lei de Cristo, é um ideal completamente inalcançável, é algo ao qual a natureza humana, como tal, nunca pode se adaptar, que se distingue em toda a sua nua
realidade.
Romanos 7 é testemunha desse fato. Aqui temos a confissão do fracasso do apóstolo, o seu brado de desespero, o seu amargo pesar por descobrir o inalcançável ideal cristão, o seu gemido sobre aquilo que descobriu ser um dilema dilacerante, sua honesta admissão de que de fato acredita que as exigências da lei de Cristo são algo ao qual a natureza humana, como tal - lute o quanto você quiser, agonize o quanto você quiser -, nunca pode se ajustar.
Para que eu não seja mal entendido - para que os meus leitores não fiquem chocados por algo aparentemente tão heterodoxo -, citarei as próprias palavras de Paulo: "Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço... Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo, nos meus membros, outra lei [sim, há o atrito] que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros. Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?" (Rm 7.19, 22-24).
As lutas de Paulo. Ele agoniza. Ele chora. Ele se esforça como somente este gigante moral, um dos maiores de todos os tempos, poderia se esforçar - tudo em vão. A lei do pecado, ele confessa, como a investida de uma corrente poderosa, varre tudo diante dela.
Fazemos bem em enfrentar de modo direto todos os aspectos chocantes desse dilema. Paulo o fez. Ele não jogou uma cortina de fumaça nem sobre a sua própria incapacidade, por um lado, nem sobre o caráter inalcançável da lei de Cristo, por outro. Ele é surpreendentemente franco a respeito do fato de que nele mesmo (isto é, em sua carne, Romanos 7.18) não pode encontrar nenhuma coisa boa. Ele francamente reconhece que se deleita na lei de Deus, ama-a, mas descobre que é algo que a natureza humana não pode alcançar. Se formos honestos sobre essas coisas, veremos a nós mesmos conduzidos, quase involuntariamente, a tomar certas medidas que nos levarão o mais seguramente a um glorioso novo dia. Isso conduziu Paulo a uma grande descoberta. Isso nos conduzirá.
Não foi porque Paulo, quando escreveu Romanos 7, ainda era obstinadamente desobediente, como nos dias anteriores à crise do caminho de Damasco. Ele realmente amava Jesus. Ele era um soldado da cruz. Ele era um cristão consagrado. Foi somente porque ele se via agora em uma nova luz - na ofuscante luz da cruz de Cristo. O que antes, como um discípulo estrito de Moisés, teria sido escusável, agora o esmaga com sua magnitude. Pequenas coisas inocentes, atitudes comparativamente inofensivas, pequenos pecados insignificantes que sob a lei mosaica passariam despercebidos se não parecessem ser virtudes reais, agora partem o seu coração. Eles são repulsivos. Eles são insuportáveis. Eles parecem queimar como o fogo do inferno. Eles picam como a mordida de um escorpião. Eles cheiram mal como uma carcaça em decomposição em uma poça viscosa.
Paulo quer se parecer com Jesus. Não é mais uma questão de mera ética. Não é mais uma questão de certo ou errado. É semelhante a Cristo? Esta é a questão abrasadora.
Paulo quer ser livre. O egoísmo, até em suas formas secretas, seus gestos inofensivos, causa-lhe náuseas. Ele desejava se parecer com Jesus em todo o encanto da sua humildade e da sua compaixão. Ele desejava amar a Deus com um amor puro e servi-lO com aquela absoluta simplicidade de olhar que caracterizou o "Unigênito do Pai". Em um ataque de ódio em direção a si mesmo, e na angústia da desesperança em si mesmo, o apóstolo clama por libertação (Rm 7.24).
Nossa Chave para a Libertação
Há um escape? Sim, há. Paulo o encontrou - todos nós podemos encontrá-lo.
Sendo assim, a minha tese é esta: estamos agindo sobre uma base falsa. Temos imaginado a vida cristã como uma imitação de Cristo. Ela não é uma imitação de Cristo. Ela é uma participação de Cristo. "Porque temos nos tornado participantes de
Cristo..." (Hb 3.14). Há boas coisas no livro Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis¹, mas a ideia básica é falsa para os princípios que são a base da vida cristã. Agir com base na imitação nos mergulhará justamente em um tipo de brejo de desespero em que Paulo se encontrou quando escreveu Romanos 7.
Não somos o que Cristo queria que fôssemos; o Sermão do Monte não encontra expressão nas nossas atitudes; o pecado como um princípio é ainda excessivo em nossa vida; não somos livres da inveja, do orgulho, do egoísmo e da concupiscência do prazer; a montanha do egoísmo secreto ainda nos esmaga e apesar de todos os nossos esforços permanece imóvel; há pouca alegria, portanto pouca liberdade de espírito, nada daquele êxtase que tanto caracterizou os primeiros cristãos; agonizamos, sangramos e lutamos - mas o fracasso acossa as nossas pegadas. Qual é o problema? Estamos agindo sobre uma base falsa.
Estamos tentando fazer o que o próprio Salvador nunca esperou que fizéssemos. A vida cristã não é uma imitação!
O grande dilema do qual estivemos falando é resolvido nos termos mais simples quando compreendemos a distinção entre imitação e participação. Porque o que é impossível para mim como um imitador de Cristo se torna perfeitamente natural como um participante de Cristo. É somente quando Cristo anula a força da minha inerente "vida do eu" e comunica a mim uma vida divina que a vida cristã, em seu verdadeiro sentido, é totalmente possível para mim. Devo nascer de novo. "... a carne para nada aproveita..." (Jo 6.63). Sem Jesus não posso fazer nada. Devo viver n'Ele e, renunciando à minha própria vida, encontrar n'Ele "uma nova vida".
Para essa "nova vida," as exigências cristãs, tão incompreensíveis e inalcançáveis enquanto nos movemos no reino da "vida carnal", são muito simples. Elas são nada mais nada menos do que afirmações quanto ao seu modus operandi. O Sermão do Monte, longe de paralisar de alguma forma essa nova vida, é simplesmente uma afirmação da maneira como ela funciona.
O problema é que não escutamos Jesus. Ele nos diz que devemos permanecer n'Ele como uma vara na Videira. Mateus 5, 6 e 7 sem João 15 iria se parecer muito com caminhões sem o motor, com uma baleia sem a água ou um pássaro sem o ar.
Naquela conversa no cenáculo, o Mestre, sabendo que seria a Sua última oportunidade de imprimir fundamentos em Seus discípulos, dá a suprema ênfase sobre essa união mística, essa unidade espiritual de todos os crentes com Ele - esse fato sublime da participação. "... permanecei em mim, e eu permanecerei em vós" (Jo 15.4). Os nossos fracassos somente confirmam a Palavra do Salvador, pois Ele disse: "... sem mim nada podeis fazer" (Jo 15.5).
Não, não fomos chamados para imitar Cristo. Na verdade, apesar de tudo, haveria pouca virtude nisso. Paulo assim disse, de fato, no muitas vezes citado 1 Coríntios 13 - o capítulo do amor. Seria apenas uma obra de madeira, artificial. Mesmo aqui Jesus diria: "A carne para nada serve".
Há alguns anos, no país onde eu trabalhava como missionário, isso foi levado ao seu grau máximo quando um devoto zeloso se crucificou; ele literalmente se pregou a uma cruz, onde os seus pais o encontraram morto quando foram resgatá-lo. A Igreja corretamente não aplaude esse tipo de coisa, contudo teoricamente ela prossegue, no caso das vastas multidões de seus filhos, sobre essa base falsa da imitação.
O cristão não é chamado para se esforçar a desempenhar um papel, como um ator que se angustiaria com linhas pobremente aprendidas. A vida cristã, no pensamento de Deus, é infinitamente mais abençoada e atrativa. "Porque temos nos tornado participantes de Cristo..." (Hb 314). Grandíssimas e preciosas promessas nos são dadas "para que por elas vos torneis co-participantes da natureza divina..." (2 Pe 1.4). O crente está enxertado no Tronco da Divindade Eterna. "Eu sou a videira, vós, o ramos" (Jo 15.5).
"... a riqueza da glória deste mistério entre os gentios, isto é, Cristo em vós, a esperança da glória..." (Cl 1.27).
F. J. Huegel
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